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A farpa no dedo

Atualizado: 5 de out. de 2021



Ana Paula Martins Corrêa Bovo


Certo dia comecei a sentir um incômodo, uma espécie de latejar na mão. Ao examinar mais de perto, percebi um corpo estranho na base do dedo indicador: um risco preto que parecia um espinho, dentro da pele. Futuquei um pouco, doeu mais. Passei uma pomadinha de vó e deixei pra lá.


Vida que segue. Mil afazeres pedindo atenção: a chaleira no fogo, a criança chamando, as contas chegando, o serviço esperando, papéis a preencher e, claro, as mil mensagens dos grupos (de que são os grupos mesmo?), o “corre”, como dizem... Para onde a gente olha tem poeira na casa. E limpa que limpa, amanhã sempre mais poeira. A lista de coisas a fazer nunca diminui.


Mas, às vezes, quando me olhava no banho ou antes de dormir, eu via aquilo: mas de onde surgiu esse trem, gente? Eu esbarrei em alguma coisa e não vi? Como não senti esse negócio entrando na minha pele? De vez em quando aquele incomodozinho chato, como mosquinha rondando... Vez por outra perdia a vergonha e aproveitava uma consulta para perguntar. Os médicos geralmente faziam uma cara engraçada: isso não é nada, não tem motivo para se preocupar. E eu saía com meu nada incomodando sempre.


Eis que um dia fiquei presa num elevador antigo, um fiozinho minúsculo e vermelho de bateria no celular. Surpreendentemente só, obrigatoriamente trancada, isolada, tudo o mais esperando lá fora. Nos primeiros minutos, ansiedade total, gritos, não acredito nisso! Todos os botões mais de mil vezes apertados! Então encostei na parede do elevador, escorregando até o chão e fechei os olhos. Inspira, expira, de novo e de novo. Nada a fazer senão esperar. Todos os afazeres do dia dançando na minha cabeça até sumirem devagarzinho...até que viesse alguém, nada adiantaria.


Aquilo latejava... Massageei meu braço, o punho, as mãos. A pele na pele é uma sensação boa, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Abracei minhas pernas, abaixei a cabeça, fiquei assim, ouvindo o bombear do meu coração. Então abri os olhos e olhei de perto, bem de pertinho mesmo: a mão da gente é coisa engraçada ou não? E quantas linhas, quantas pintinhas eu nunca havia reparado. Acabei pegando gosto em olhar as coisas mais de perto.


Foi quase um susto quando abriram a porta do elevador e, meio alheia, voltei à gentarada correndo, à fumaça, ao mormaço, ao barulho, ao trânsito... Todo dia, dia e mais dia. Na correria para a qual retornei, comecei a desejar, cada vez mais, voltar ao meu estado-elevador: tudo suspenso lá fora, eu me olhando, percebendo meus meandros, um mundo inteiro em mim.

A farpa lá, cravada. Quase me estranho sem ela.



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