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Diário pandemoníaco

Josué Godinho
Dia sete: 22 de abril de 2020
Estou lendo Moby Dick, esse livrão, em todos os sentidos. Este livro sempre esteve no meu horizonte de expectativas de coisas que um dia leria, e resolvi fazê-lo agora. No capítulo XII de Moby Dick, intitulado “Biográfico”, Ishmael traça um perfil biográfico de seu já então companheiro Quiqueg, “um selvagem” proveniente da longínqua ilha de Kokovoko; é importante dizer que, além de selvagem, de não europeu, Quiqueg é pagão. Mas o capítulo trata justamente de como o personagem pagão se esforça por afastar-se de suas origens e conhecer e aprender com os cristãos e seus costumes, o que, segundo o narrador, possibilitaria que “fizesse seu povo ainda mais feliz e, sobretudo, melhor do que era”. Ledo engano o de Quiqueg, o qual, passado tempo em convívio com costumes baleeiros e tendo chegado e desembarcado em Nantucket, ilha estadunidense pertencente ao estado de Massachusetts, chega à terrífica conclusão de que: “O mundo é mau em todos os meridianos”, e opta, então, por morrer pagão.
Hoje é aniversário de meu avô paterno, o único que resta vivo e que completa 91 anos. Saudável, altivo, marceneiro ainda, e diariamente. Sou seu primeiro neto e, desde a minha adolescência, pouco mais ou menos, converso bem com meu avô e, em certas ocasiões, fui um seu confidente. E é claro que não trarei para este papel as coisas que ele me conta, não tenho esse direito. Só o faço das mais suaves.
Foi a mim, por exemplo, que ele confessou há mais de uma dezena de anos o seu desejo de escrever um livro de memórias. Tudo é memória neste mundo. Tudo. O que vivemos, o que sofremos, o bem ou o mal que recebemos ou doamos, tudo isso é memória. Digo, “a vida só é possível reinventada”, e é como memória que o fazemos com frequência, ainda que não verbalizemos, ainda que não registremos no papel ou nas bases magnéticas, só na memória é que as coisas se vão tornando possíveis. Mas eu dizia que meu avô me confessou seu desejo de escrever um livro de memórias, mas que não sabia escrever, e esta era a única mágoa que restava de seu finado pai, a de não ter permitido que os filhos estudassem, aprendessem a ler e escrever. Meu avô é de um tempo em que, ou se nascia em família abastada e seguia uma profissão formal que fosse comum na família, ou se nascia em família necessitada e tão logo fosse possível, tornava-se ferramenta de trabalho também. Mas, seguindo, eu dizia, diante da confissão de meu avô, pronto me dispus a ouvi-lo e registrar suas memórias, mas não pude; segundo ele, “tem coisas que ele não pode falar, mas se soubesse escrever, escreveria”.
Hoje meu avô estava melancólico, nos seus 91 anos. Imagino, também, que não deve ser fácil viver até os 91, com saúde e com todas as memórias acumuladas. Ele ficou feliz com minha ligação, mas, por um momento, confessou: “Eu já sofri muita coisa, fui passado pra trás muitas vezes, sofri abuso de autoridade de muita gente, mas acho que hoje eu não sofro mais com isso não, tem muita coisa boa na minha vida”. Mas essa fala me remeteu à fala de Quiqueg (eu estou sempre fazendo isso, metendo a literatura no meio das coisas, da vida, das relações, mas a literatura, pra mim, é isso, tem que ser isso. Tem uma anotação do Lima Barreto no seu Cemitério dos vivos, que é o seu diário lá do hospício, quando ele está tomando uma ducha de chicote, de água fria, e se lembra do Dostoievski, da Recordação da casa dos mortos, e diz: “Ah, a literatura ou me mata, ou me dá o que eu peço dela”), de que “o mundo é mau em todos os meridianos”. É e não é, diz o Riobaldo, “tudo é e não é”, e tudo é muito provisório, mesmo a memória, ou as memórias, de que nos fazemos.
É isso!
