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Dois mil ou vinte

Sérgio Gimenes Romero
Dois mil ou vinte
Dois mil ouvintes
ouviriam alguma coisa?
Creriam se lhes contássemos?
Versos para um ano tão perverso
Não seriam assim diversos?
Digo, os sonhos ruins são ruins
Porque inflam meu sono
Com a realidade de quando estou desperto
Os sonhos bons são piores
Pelo contraste com a realidade
Que encontro ao despertar.
Vereda estranha esta com que converso
Neste verso torto e malogrado
Aquém do tempo
Além do espaço
Reverso, devasso?
Agosto
Passo a passo, palmo a palmo, o caos vai rompendo as barragens. Frágeis barreiras estas, custosamente alçadas. Traçadas sob os fios do dia a dia, as mesmas palavras rotineiramente ditas, sílaba a sílaba esgarçadas. Mas o isolamento que o confina consigo mesmo também fia com ela o encontro não ensaiado.
E os dois, assim, se encontram no lugar mais improvável: um com o outro.
Todavia e por toda via avança a pandemia, pandemonizando tudo e todos. O isolamento só não nos isola daquilo que nos machuca dentro. E ela sofre porque não lhe quedam refúgios. Faltam abraços tanto quanto faltam abrigos.
Ele exercita o autoengano à exaustão. Porém, exausto e desenganado, vai sendo aos poucos conjugado. Inesperadamente descobre pretéritos e futuros se chocando num presente imperfeito.
Ela, à deriva entre cômodos e incômodos indistintos, sente-se consumida pela necessidade de sentido, de rumos sem muros. Mas toda a casa agora cansa, todo canto parece agudo, não há recôndito que não tenha custo.
É por isso que ela começa a perscrutar o céu noturno à cata de conjunções. E o ensina que se é possível agregar estrelas...
É por isso que ele lhe dá, em seu aniversário dela, um telescópio.
Ela e ele descobrem juntos as quatro luas com que Júpiter presenteou Galileu. E com que o mesmo Júpiter presenteia os dois, sob a densa noite imensa do quintal mineiro — dois, enfim, constelação. Conjunto articulado que cruza o céu escuro sem largar as mãos — conexões.
Setembro
Você que tece a trama dos meus desejos e acende em mim a vontade de ser livre, livre pra ser, você que sempre sabe o caminho, a trilha, a direção, me diga onde ficará o lugar longe do fim do mundo, em algum fim de mundo talvez, em que o ar seja mais puro, a vista mais bonita e em que as trilhas todas sejam trilhadas de mãos dadas.
Outubro
Ela sonhou um sonho conhecido, tantas vezes sonhado. No seio da metrópole fria-cinza, cruza quarteirões de prédios e pessoas de concreto. Mas, grata surpresa, quando dobra uma esquina — como as outras, diferente de todas as outras — o mar irrompe.
O mar avança e recua, mas avança. Está ali porque os homens lhe quereriam à guisa de objeto de decoração, circunscrito. Porém o mar, insubmisso mar, feminino mar, a mar, não obedece. Sobe e sobe e avança e avança até que tudo e até que todos sejam mar.
Novembro que vem, novembros que foram
Organizei tão bem meu pessimismo que até parece o de outra pessoa. Sei bem que sob o verniz do novo o velho espreita. No coração do violento, o medo. A justiça mais injusta se arvora, na cólera em paz mal disfarçada. Em desespero se busca o inimigo. Mais que o amigo em tudo desejado. Contudo e com tudo, entre companheiros, desesperos, tragicamente, recomeço a caminhada. Recolho restos, sigo rastros — migalhas deixadas nas frestas, desvãos. Pessimista confiante resistindo, na utopia de amar e ser amável.
