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Livreiro e colibri

Marcelo Diniz
O contexto pandêmico pareceu-me, em meus 53 anos de idade, a evidência indelével de um trauma coletivo. Creio que nunca antes vivi o pavor da própria morte como um drama coletivo de forma tão concreta e iminente. Acrescente-se a esse aspecto o contexto específico de meu país, onde a pandemia prometeu e cumpriu se realizar realçando ainda mais nosso alto índice de desigualdade social e precariedade institucional em um contexto político nada favorável à sensatez de medidas emergenciais que minorassem os danos. A pandemia me levou a experimentar a fragilidade do lugar que habito nesta delicada teia da realidade em que vivo. Enorme o sentimento de impotência, quando sua atividade no mundo se restringe a se proteger e, se possível, proteger os que lhes são caros e próximos.
Quase perdi um irmão 10 anos mais velho, logo ao começo da pandemia, que depois de três semanas internado, hoje convive com as sequelas da doença. Perdi amigos e conhecidos. Gostaria de registar aqui a perda de um livreiro meu conhecido. Seu Carvalho tinha sua banca no corredor da Faculdade de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a qual frequento desde meu mestrado até os últimos dez anos como professor de Teoria Literária. Sempre parava em sua banca e conversávamos, algumas vezes comprava um livro, as últimas vezes ele me dera de presente livros de Dalton Trevisan e outro cuja orelha é de minha autoria. Sua simpatia era constante, seu otimismo idem: nossos assuntos em geral eram comentários genéricos sobre política, ou um pedido de livro que eu lhe fizesse. Despedíamo-nos sempre com seus votos de que tudo melhoraria, apesar de... Um otimismo vago entre a conclusão óbvia que temos de seguir adiante e a função fática da despedida cotidiana. Foi grande a comoção virtual de sua perda: estudantes, funcionários do administrativo, professores, não houve setor da faculdade que não manifestasse seu lamento. Compus em sua lembrança o seguinte soneto:
todo sebo é o pretérito imperfeito
dos livros como um rio cujo leito
fosse feito de acúmulo e mistura
do que livra de si cada leitura
é todo livro um seixo que polido
devolve-se ao comércio a ser relido
e devolvido o livro não obstante
espreita outro leitor de sua estante
um rio o corredor com seu livreiro
que faz de todo livro um verdadeiro
motivo desta gente que dispersa
para comprar ou por conversa
sempre doce o sorriso em seu trabalho
imprime na lembrança seu Carvalho
De fato, “o sorriso em seu trabalho” foi o que destilei dos anos de convivência com seu Carvalho. Durante a quarentena, com o recesso das aulas, dediquei-me a estudos e composição, o terreno em que me refugiei do vírus e do terror político. Além de colocar em dia a produção de estudos pendentes que vinham se protelando no cotidiano de aulas então interrompido, compus muito, 10 canções, com meu parceiro e querido amigo Fred Martins, que mora há mais de 10 anos na Europa, hoje em Lisboa. Compor é uma de minhas maiores alegrias, sobretudo por ser letrista, ou seja, por me colocar constantemente na situação de parceria. Fizemos a marcha "O rancho da seita suicida" (https://www.youtube.com/watch?v=Pu1xwLOCNUs) bem a propósito do contexto, num exercício de linguagem direta, de testemunho do tempo em que vivemos e de protesto. Fred registrou ainda outra canção, "Colibri" (https://www.facebook.com/378611648826476/videos/549431539337971/), composta por nós dois há um ano, mas que quisemos que fosse nosso voto de futuro. Fred introduz a canção com um comentário que acena para a leveza, o que se aprenderia com “os seres do ar”, como diz no vídeo. Sempre achei curioso o contraste entre a leveza aparente dos passarinhos e a percepção de que eles estão sempre empenhados na labuta da vida, o batimento cardíaco aceleradíssimo de um colibri e a aparência de que ele simplesmente levita, abolindo toda a gravidade que o cerca. Suponho que seja o trabalho do sorriso o que o colibri partilha conosco neste contraste, como uma cumplicidade ecológica que devemos aprender.
