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Poemas, sonhos e pandemia



Fernanda Gontijo de Araújo Abreu


Para que se abra:

leitura ao pé da noite e do poema


Poemas e sonhos são filhos da mesma carne. Formam-se ambos no ventre sonoro onde imagens e palavras são vertidas. Carecem de um corpo que lhes transmita seus genes sensíveis e seja a tradução, em si mesmo, da fina linguagem de que são feitos — folha, concha, segredo ou miragem que lhes dão vida. Poemas e sonhos já nascem livres. São aves ligeiras em voo alto e rascante por sobre a terra tenra. Quando líquidos, são bolhas de pensamento e dom, rebentos voláteis de saliva marítima ou cheiro morno de rio. Poemas e sonhos estão sempre além das janelas — esse lado de fora tão próximo e infinito —, mas buscam por nós e pousam em nós, algures, do lado de dentro, e fazem ninhos. Ah, meus poemas e sonhos! Como me ensinam sobre mim que sou eu, embora seja hospedeira de outros? Pois tantos desterros cabem em mim e tantas palavras!... Seu ritmo translúcido viagem galopante em minhas seivas — conecta-me, desconecta-me, faz-me e desfaz-me —, escrevendo apenas, nas linhas de minha semente galáctica, que um dia hei de ser todos espelhos que fui enquanto paisagens passavam e meus versos, moventes, dormiam.


Para que não se perca: sonhar a escrita, mesmo na pandemia


A espessura da escrita não tem mesmo um só tamanho. Pois que atravessa o véu noturno dos olhos e vem calhar — relâmpago! — na fotografia que lhe estampa o coração. Sonhos que revelam sonhos que revelam sonhos que re-velam. Na pandemia, busquei ler o que me revelavam, o que em mim se escrevia à revelia e em perfeita sintonia com minha pulsação. Três sons de sonhos. Três fios tecidos pela cadência pandêmica a prenunciar a máscara, a marca, a mesa e a mácula de minha mão. És tinta, disse a mim mesma. Escuta, o sonho soprou. Soprei, e veio o poema para desenhar. Ainda janeiro: um rapto, um pesadelo pétreo a rasgar-me as cores e o calor do dia. Em maio, um claro anseio, vindo às pressas a me falar de prazos e coisas de avião. Enfim, setembro e, nele, um saber de brisa e corte e a difícil tomada de uma decisão. Navegante, vagueei no tempo esse oceano onírico até chegar aqui, onde ancorei três vezes a nave dos textos despertos, esta que, pouco a pouco, cruza as páginas deste cais.


Sonho 1, janeiro de 2020:


O dia é opaco, branco e sombrio. Percorremos a galeria de arte como quem rastreia enigmas. Estou na companhia de Laura, filha-flama, em corredores enevoados, longínquos. Do lado de dentro, há quadros em cores vivas: vermelhos, azuis e amarelos. Externamente, são lápides acinzentadas exibidas como esculturas em mármore envelhecido. Entreolhamo-nos, e os olhos comunicam achados implícitos. Na linha futura do sonho, encontramo-nos em apartamento alto de um edifício oblongo, em verde tingido — ali, morada nossa, embora, aqui, desconhecido. É noite, nossas roupas são as mesmas da galeria visitada ao dia – sinais metonímicos da travessia imagística. Da janela, observamos transeuntes que se apequenam à distância de nossa visão. Laura avisa-me, de repente, de que um deles, abandonado ao relento, “acaba de morrer”. Comovemo-nos, choramos e, de algum modo, sabemos, naquele instante, que esta seria a resposta da esfinge. De súbito, acordo com forte impressão. O peito aperta, o amargo vem à boca. Minutos seguem-se de olhos abertos como se ainda estivesse sonhando. É o sentimento do mundo que parece vir bater-me à porta. A contundente sensação de ter esbarrado, embora de relance, num drama coletivo — meu pequeno drama poemístico.


Sonho 2, maio de 2020:


Apressada, saio de uma sala de aula pequena, pouco iluminada. Levo livros, papéis em pasta esverdeada. A universidade transfigurada em galeria, ao estilo shopping. Há escadas-rolantes, movimento de pessoas, departamentos à feição de lojas. Preciso encontrar o coordenador do curso para dizer-lhe da prorrogação de meu estudo. Ele não se encontra no momento, avisa-me a secretária de rosto indiferente e desconhecido. Desço as escadas, vou ao encontro de algumas colegas que me esperam na lanchonete do moderno labirinto. Vejo-as à distância, uma delas é colega da instituição onde leciono. Aproximo-me. A que está com longa e densa trança jogada ao colo alerta-me para o fato de que se trata do “último dia para solicitação”. Vou de novo, correndo, à procura do encarregado àquela liberação. Atravesso grande porta e passo a uma paisagem de clube, com piscinas e quadras imensas. Todos brincam, e eu me desvio, convicta, das bolas de recreação. Encontro telefone público e consigo finalmente transmitir a alguém a urgência de meu pedido. Perambulo pelo espaço e vejo um helicóptero sobrevoar aquela cena trazendo, enfim, a pessoa esperada. Sinto alívio. Ele chega a tempo de atender-me. Saio do clube, da galeria, subo comprida escada branca contígua aos dois ambientes, mas deles separada. Quantos degraus! Enquanto escalono, penso: definitivamente não me rendo. Nem clube, nem galeria, meu trabalho não é simples distração, nem mercadoria.


Sonho 3, setembro de 2020:


Debaixo dos sonhos, todos nós somos iguais. Entramos espectadores e saímos, como na peça de Pirandello, personagens de nós mesmos à procura de um autor, nossos reis e reais. Ali, tudo é sentido. E nada é apenas sentido. E resplende, na memória de meus olhos, o majestoso arco-íris de Akira Kurosawa na escrita de seu sonho de menino. Todos, como ele, no fundo desejamos em algum sonho atravessar o véu de cores de um raio de sol sobre a chuva, crianças que com imagens brincam na ficção de sua realeza íntima. Setembro chega-me com seu perfume e incertezas. Desta vez, encontro-me em sala de aula elaborando, a lápis, uma avaliação a meus alunos. No papel ilustro, em cores, as questões do trabalho a ser proposto. Enquanto batalho minha arte, o celular avisa-me, em mensagem de WhatsApp, de que preciso traduzir o poema da escritora a qual estudo. Sinto-me inquieta e de novo apressada. Preciso partir à tradução, mas almejo, ao mesmo tempo, terminar a tarefa iniciada. É quando de mim se aproxima uma colega apresentando-me sua avaliação feita com uso de alta tecnologia. Que perfeição! Há cores e letras e quadros, tudo metricamente calculado. Penso em desistir de meu trabalho manual e lançar mão da artimanha, afinal, com a pandemia fomos levados, para bem e para mal, ao mundo da vida virtual. Mas tenho por meu texto tanto apreço que não vejo maneira de, naquele momento, abandonar o meu manejo. Concentro-me novamente e retorno ao desenho de modo, porém, acelerado. Em tempo ouço de uma aluna de nome Isabela: “Professora, não precisa se preocupar. Esta é a turma da M.” Esta última referência, que aqui omito de propósito, foi a chave de leitura com a qual abri a porta do sonho — e saí. Trazendo agora, ao canto da boca, o indescritível sabor de ter, em algum desdobramento, alcançado o arco-íris.


Para que continue este sonho, que não é só: Ouvi dizer que ando sorrindo enquanto durmo...




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