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Três teses desdobradas a partir de um conceito de história: a exceção, o assombro e nossa tarefa.

Atualizado: 12 de out. de 2021



Fernanda Gontijo de Araújo Abreu


Uma antítese inicial: por tudo aquilo que excede e não tem cabimento

As “teses-poema” que se seguem foram desdobradas de um pequeno ensaio por mim escrito, ainda não publicado, pelo qual me propus refletir, numa articulação com o atual contexto pandêmico, sobre a tese 8 dos escritos de 1940 do filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, vindos a público postumamente sob o título “Sobre o conceito da história". Nessa tese, a qual o leitor pode encontrar em rápidas pesquisas virtuais, Benjamin chama atenção para um “estado de exceção” que se torna regra na “tradição dos oprimidos”, sendo necessária uma reviravolta (dialética) para que, de certo modo, sejamos capazes de exceder o referido estado, reafirmando-o pelo seu oposto, ou seja: criando “um verdadeiro estado de exceção” em que tal tradição ou regra sejam de fato rompidas. Para Benjamin, o retorno, ou “citação”, de dadas ocorrências históricas no presente – e não a imprópria ideia de progresso acalentada pela modernidade – causam-nos um espanto que, contudo, não é de ordem filosófica, pois não gera conhecimento algum. Como tradutor poético que também fora, Benjamin indicou ser parte de nossa tarefa traduzir, nas formas nomeadoras da língua, um conceito da história que deva sim nos trazer um assombro, porém ressignificador. As teses aqui desdobradas buscam, portanto, acender reflexões poéticas que rastreiem na palavra “pandemia” um “estado de exceção” o qual precisamos, dentro do atual espectro político brasileiro, exceder e redimir pelo dom da língua.


Tese 1:

A exceção: ou aquilo que há de romper a retidão-obus

Ouço passos de coturnos a esquadrinhar os subúrbios. Não há limites. As fronteiras já se perderam no horizonte da artilharia. Eles voltaram. E o tempo foge acelerado pelo vento que os canhões ateiam em nossa direção. Não, não é a guerra – são os homens. Os mesmos do ontem e do amanhã aceso que a ronda noturna ainda não deixou dormir. Abro minhas tão largas janelas. Por elas, o sol rebrilha sempre descarado, e refulge, solitário, em suas lâminas de vidro. Corto minhas correntes. Sorrio galhardamente pelo quarto e procuro um ponto de partida – não há ninguém. Porém, sobre os lençóis, as folhas tingidas me lembram que as multidões esperam pela festa dos cravos, e os olhos vermelhos prometem o dia em que todo esforço será recompensado pela fragrância de abril. Livros, quadros, pedras e projéteis mínimos. Com eles, construirei minha própria barricada e por uma combustão íntima me unirei aos povos – Será decretada, para sempre, a linha arqueada e quase transparente com a qual desviaremos sua voz alta e seu fuzil.


Tese 2:

O assombro: para que não morra o pensamento entre os escombros da luz

O anjo da história pousou ao meu lado. Soprou-me ao ouvido o segredo dos tempos. “Retorno. O futuro é uma luz ácida a corroer a esperança-além”. Prenunciou-me com seus olhos espantados a mirar as ruínas aquém. Queria ler-te em silêncio. Queria – Queria agarrar-me a suas asas e flanar por entre tempestades. Mas o anjo já sabia, e pela impossibilidade do préstimo foi lançado, olhando-me, ao imenso oceano de máquinas escondido nas águas do progresso. Desde então sonho acordada. Desde então, tenho vistas úmidas e caminho por entre escombros tentando reuni-los – Inútil travessia? Aqueles que seguem a retilínea marcha não entendem como é raro o labor de voltar e colher imagens e com elas desfazer castelos de reinos encarcerados. Soltar os fantasmas à toa e partilhar-lhes a alegria de adensar o pensamento. O homem que acordado dorme não encontra um reino a libertar. Ele desconhece catástrofes e por isso não aprendeu a subir e descer ruínas. É que ele acredita, fielmente, que o anjo da história é um fantasma, a que ele precisa, urgente e orgulhosamente, enclausurar.


Tese 3:

Nossa tarefa: traduzir a história, redimir na palavra a poesia

E se tivéssemos que pousar nossa ternura em armas de fogo para nos lembrar que a guerra é o destino último das máquinas, e que, sem lábios, estas ainda nos falam, insistentes, dos seus caprichos infantis? E se enxergássemos nestas fúnebres trombetas o jogo cênico da raiva, o desprezo contínuo pelo mundo – mas não este mundo! –, pois tão somente aquele que um dia lhe ofereceram como o inferno fausto em que seria feliz? Sim: era você criança, e não sabia. Era você ausente, e não queria. Era você, enfim, um homem, e jamais entenderia. Traíram-no? Torceram-no? Tiraram-lhe? Oh, criatura vã, criador de criaturas vãs – vãs como são todas as criaturas, loucos como são todos os criadores! Onde estão hoje as palavras que corriam soltas pela textura de suas asas e tão cara imensidão? Fizeram de você um livro fechado na prateleira. Triste. Traste. Boca aberta sem porvir. Hoje arrota a pandemia do dinheiro pela janela. Vai às ruas, aplaude mitos sem epopeia e clama por uma intervenção – mas apenas a militar! Quisera eu que você pudesse ainda ouvir esse som guardado na caixinha de música da sua infância, que, por ela, apurasse os seus olhos pianistas e, quem sabe, fizesse ainda tocar, pela língua que dobra e desdobra – de-sar-ti-cu-lan-do –, o universo de um único verso humano que a poesia reservou para ti.


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